Pardo existe?

Bolají Xavier
5 min readJun 6, 2020

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Gostaria de deixar algumas questões próprias sobre o tema, já que é um assunto muito comentado, inclusive ficando entre os assuntos mais comentados do Twitter. Essa questão, nos dias atuais, aponta qual a relação que os “pardos” têm com a luta antirracista, mostrando que precisamos da união de pessoas racializadas para que os movimentos tenham mais voz e visibilidade. Coloco que pessoas não-brancas sofrem com os racismos Institucional, Estrutural e Cotidiano (Grada Kilomba) e, por isso, não detém “privilégios” com elementos como cor de pele mais clara ou cabelo liso natural.

O privilégio é exclusividade das pessoas brancas que, na sociedade pautada na opressão de raça, têm seus espaços próprios, excludentes e reservados pelo Estado enquanto é preciso pensar políticas públicas para inserção de grupos racializados nos espaços brancos, eurocêntricos e normativos. Temos, implantados na sociedade, a negação ou relativização quanto à identidade racial de uma pessoa, e esse movimento de deslegitimidade é parte do racismo que aponta a necessidade de segregar os pares não-brancos para perpetuação do sistema de opressão.

A construção da identidade das pessoas não-brancas é essencial para que se entendam como seres pertencentes à um movimento, além de criar uma maior rede de contatos e apoios pois unidos nós existimos e resistimos. Reforço que, há tons de pele de negro assim como há tons de pele de branco e as formas de tratamentos diferem, as formas com que são vistos nos espaços públicos diferem, a forma como são ouvidos difere, os papeis que reservam para essas pessoas difere. Tudo difere. E é preciso que tenhamos isso em nossas mentes quando conversamos sobre “pardos”, mas, mais do que tudo, é preciso entender que as populações não-brancas são alvo do racismo instaurado pela população branca para silenciamento e dominação.

Segundo o IBGE, “pardo” é quando se tem um progenitor branco, mas não é lido como tal, tendo características negras ou indígenas que, por consequência, fazem com que sejam vistas como racializadas. Essa nomenclatura surgiu, assim como as demais quatro classificações étnicas (preto, indígena, amarelo e branco), em 1991, após a antiga classificação que colocava “pardos” como termo guarda-chuva para mulatos ou caboclos ser considerada fraca. Entretanto, esse termo é problemático pois relativiza o tom de pele e os traços fenotípicos das pessoas, fazendo com que pessoas mais claras sejam menosprezadas nas discussões dos movimentos raciais. Por outro lado, o termo é muito utilizado justamente porque, com a miscigenação, os descendentes têm enraizado no imaginário, a narrativa de ser metade branco e metade não-branco e, por isso, não sabe onde se encaixar.

No Brasil, a Eugenia chegou como promessa de melhoramento da sociedade e, em 1911, no Congresso Internacional das Raças, em Londres, João Batista de Lacerda afirma que a população brasileira iria embranquecer através do processo de miscigenação dos povos. Os filhos de brancos e negros, por exemplo, foram chamados de “mestiços” ou “mulatos” que poderiam pender para o lado do negro, de negação à civilização, ou do branco, como fruto da nova era civilizada da nação, sendo considerado 50/50 até o embranquecimento total da população. Essa política, apesar de não ter dado certo, deixou resquícios. Além da necropolítica (termo cunhado por Achille Mbembe) que vivemos hoje, deixou os vestígios do imaginário popular. Então temos o pensamento coletivo de que uma pessoa racializada casando com uma pessoa branca vai clarear e livrar a família “da marca”. Um exemplo muito utilizado é o quadro de Modesto Brocos — “A Redenção de Cam”, em que tem a figura de uma mulher negra, de pele retinta, com gestos de agradecimento religioso, uma mulher mais nova, de pele mais clara, que tem um bebê branco no colo e um homem branco observado a cena. Isso é visto como uma avó negra agradecendo aos céus por, “finalmente”, ter tirado a marca maligna de sua família e o neto branco, fruto do relacionamento da filha com o homem branco e é a representação máxima do projeto de embranquecimento social.

Quadro “A Redenção de Cam” (1895). Modesto Broncos. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural

As pessoas lidas socialmente como racializadas, são vítimas do racismo e, por isso, devem ser mais respeitadas, ouvidas e lidas. Sendo assim, “pardo” é um termo técnico que não é levado para a prática, já que, com a classificação do IBGE, é possível gerar dados para identificar demandas para políticas públicas serem aplicadas mas, nos movimentos raciais e na sociedade, o “pardo” pode não se enxergar pertencente e assim, não ter sua identidade construída, o que desfragmenta as movimentações e ambos os lados ficam mais preocupados com a tonalidade da pele do que com a construção de identidade para a união na luta contra o racismo.

Se, durante as movimentações raciais mais recentes, você não entende seu papel no movimento, é importante entender que houve uma miscigenação no Brasil e, por isso, há vários tons de pele de pessoas racializadas mas, todas essas pessoas, são encaixadas nos estereótipos oriundos do período de politicas coloniais e de pensamentos eugenistas que erguem as barreiras socio-político-econômico-cultural que a sociedade brasileira carrega. Por isso, é preciso ouvir e ver as pessoas racializadas de pele mais clara, porque são frutos dessa miscigenação e não têm culpados para isso. Se você é lido socialmente como alguém racializado e tem parentes brancos, aceite e eduque-os. E, se você é uma pessoa lida socialmente como branca, leia sobre branquitude e sobre os privilégios que a mesma carrega, e converse com seus pares sobre. Precisamos ouvir e conversar. É IMPORTANTE.

Fontes:

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, 2020.

LANG-STANTON, Peter; JACKSON, Steven. Eugenia: como movimento para criar seres humanos ‘melhores’ nos EUA influenciou Hitler, 2017. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-39625619>. Acesso em: 25. Mai. 2018

PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia. Cor nos censos brasileiros. Revista USP, n. 40, p. 122–137, 1999.

RETRATOS A REVISTA DO IBGE. Somos todos iguais? O que dizem as estatísticas. Rio de Janeiro: IBGE. s/v, n. 11. Mai., 2018

SAPIENS, HOMO. Documentário. Direção e roteiro: Peter Cohen. Produção: Arte Factum, Svenska Filminstitutet, Sveriges Television. Distribuição no Brasil: Versátil Home Vídeo, 1900.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Previsões são sempre traiçoeiras: João Baptista de Lacerda e seu Brasil branco. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, v. 18, n. 1, p. 225–242, 2011.

SENKEVICS, Adriano. A cor e a raça nos censos demográficos nacionais, 2015. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/cor-e-raca-nos-censos-demograficos-nacionais/>. Acesso em: 01. Jun. 2020

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Bolají Xavier

Graduada em História. Mulher preta, filha do Ilê, intelectual orgânica desde criança. Nascida com Honra. Assino como Bolají Alves também rs